Como apoiar os trabalhadores do saneamento a reivindicar os seus direitos: lições dos movimentos dos catadores

8 min ler
Gangalappa, 50 anos, (centro) é um trabalhador do saneamento que faz a manutenção manual do esgoto para limpar bloqueios residenciais em Bangalore, Índia.
Image: WaterAid/CS Sharada Prasad/Safai Karmachari Kavalu Samiti

Os trabalhadores do saneamento prestam um serviço público inestimável, mas muitas vezes, trabalham em condições que os expõem às piores consequências do mau saneamento, anulando o seu direito ao trabalho seguro. Maria UribePerez fala da sua investigação sobre o que podemos aprender com os movimentos dos catadores de lixo, sobre como os trabalhadores do saneamento podem receber apoio para se organizarem e, assim, fazerem valer os seus direitos. 

Apesar de prestarem serviços essenciais para alcançar o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 6, os trabalhadores de saneamento, como os responsáveis pela limpeza e esvaziamento de esgotos, têm muitas vezes a sua segurança, dignidade e saúde comprometidas. Em muitos países, trabalham em condições perigosas e a sua fraca articulação como organizações ou movimentos dificulta a sua capacidade de reivindicar os seus direitos ao trabalho seguro. Se os trabalhadores do saneamento unirem forças, podem ser capazes de se fazer ouvir. Então, como podem as organizações internacionais apoiá-los nos seus esforços para se organizarem e reivindicarem os seus direitos a melhores condições?

Propusemo-nos descobrir se é possível obter informações interessantes a partir da luta de trabalhadores marginalizados noutros setores. Aqui, concentro-me no que podemos aprender com os movimentos dos catadores de lixo em todo o mundo.

Muniraju ajuda Kaverappa a esvaziar manualmente um poço, em Bangalore, Índia.
Muniraju ajudando Kaverappa a esvaziar manualmente um poço em Bangalore, Índia.
Image: WaterAid/ CS Sharada Prasad/ Safai Karmachari Kavalu Samiti

Ganhar a vida com a reciclagem de resíduos

Há milhões de catadores de lixo em todo o mundo, que ganham a vida com a recolha, a reciclagem e a venda de materiais que outros deitaram fora. Apesar de este ser um serviço público que tem benefícios económicos, sociais e ambientais para as comunidades, esses trabalhadores têm tendência a não ter proteção social, a suportar más condições de trabalho e a ser praticamente invisíveis, estigmatizados e hostilizados. A eliminação inadequada de materiais tóxicos e de resíduos perigosos pode colocá-los em risco de danos diretos, sobretudo quando o seu acesso a equipamentos de proteção é limitado.

Os trabalhadores do saneamento têm muitas coisas em comum com os catadores de lixo. Prestam um serviço público essencial às comunidades e, no entanto, são discriminados e invisíveis aos olhos da sociedade. Frequentemente, os trabalhadores de saneamento são afetados pelo uso inadequado dos sanitários, onde os resíduos sólidos eliminados de modo incorreto dificultam o seu trabalho e tornam-no perigoso. De igual modo, objetos pontiagudos, como seringas, podem causar danos graves quando, como é habitual, não se usam equipamentos de proteção.

Apesar de serem postos à margem e excluídos das políticas públicas, os catadores de lixo em todo o mundo começaram a organizar-se nas duas últimas décadas. Na América Latina e no sul da Ásia, têm sido altamente ativos na formação de cooperativas para dar resposta às suas necessidades económicas, o que lhes permitiu reunir recursos e negociar direitos laborais básicos, incluindo proteção social, aumento de rendimentos e melhoria da saúde e da segurança.

Os trabalhadores unem esforços para reivindicar os seus direitos

Os catadores de lixo fizeram grandes avanços na sua luta por melhores condições de trabalho. Quais foram as chaves para o seu sucesso, e como podem ser traduzidas de modo eficaz para ajudar os movimentos dos trabalhadores do saneamento a serem bem-sucedidos?

1. Ações de sensibilização e reconhecimento

As organizações de catadores de lixo em todo o mundo conseguiram tirar partido do facto de prestarem um serviço público para obter reconhecimento e visibilidade como uma ocupação digna. Em países como o Brasil e a Colômbia, receberam o apoio de organizações internacionais para criar espaços partilhados em que catadores, membros da comunidade e representantes do governo pudessem reunir-se para partilhar os seus pontos de vista sobre a inclusão dos catadores na cadeia de valor dos resíduos municipais. Através destes espaços, os participantes desenvolveram soluções viáveis para diminuir o estigma e o assédio associados à recolha de resíduos e para melhorar a triagem de resíduos, o que ajudou a limitar os riscos enfrentados pelos trabalhadores devido aos resíduos perigosos. Também ajudou a humanizá-los aos olhos das suas comunidades e dos governos, transformando a sua imagem para a de membros produtivos da sociedade que têm um impacto positivo através do seu trabalho, tanto aos olhos da sociedade, como aos dos próprios trabalhadores.

Dar oportunidades para que a comunidade e os responsáveis governamentais comuniquem com os trabalhadores é fundamental para melhorar as condições dos trabalhadores de saneamento. Ao destacar a importância do seu trabalho para o bem-estar e a higiene da sociedade, a marginalização e o assédio enfrentados pelos trabalhadores do saneamento podem diminuir. Além disso, a consciencialização sobre como a eliminação incorreta de resíduos sólidos pode afetar gravemente os trabalhadores pode levar a uma melhor utilização, reduzindo a quantidade de resíduos sólidos que acabam por ir parar indevidamente às sanitas e aos esgotos.

Como ponto de partida, as organizações internacionais podem contribuir para a consciencialização recorrendo a estratégias como campanhas em meios de comunicação social em que se contam histórias, através das quais as vozes dos trabalhadores de saneamento podem ser ouvidas e as pessoas assistir às suas condições de trabalho. As organizações também podem disponibilizar espaços de debate conjunto, para que os trabalhadores possam ter uma maneira de expressar os seus pontos de vista e receber opiniões de outras partes interessadas sobre como promover a sua luta por melhores condições.

Juma Hamisi e Juma Ng'ombo, funcionários do saneamento, inserindo uma ferramenta metálica numa latrina de fossa para remover materiais sólidos antes de esvaziar a latrina usando a máquina gulper, Temeke, Dar es Salaam, Tanzânia.
Juma Hamisi e Juma Ng'ombo, funcionários do saneamento, inserindo uma ferramenta metálica numa latrina de fossa para remover materiais sólidos antes de esvaziar a latrina usando a máquina gulper, Temeke, Dar es Salaam, Tanzânia.
Image: WaterAid/ James Kiyimba

2. Criação de capacidades e de redes

A nossa investigação mostrou que logo que os catadores começaram a organizar-se em cooperativas, os grupos começaram a dar aos seus membros acesso à formação, incluindo ao nível da contabilidade e do planeamento empresarial, reconhecimento legal e qualificações técnicas associadas à gestão de resíduos. No entanto, tendem a existir lacunas de formação em áreas fundamentais para o sucesso da sua ação coletiva, como a negociação de competências e a formação sindical, bem como a formação em saúde e segurança no trabalho. Nalguns casos, as cooperativas procuraram o apoio de organizações externas para reforçar as capacidades nestes domínios fundamentais e na facilitação da ligação em rede entre cooperativas e entre cooperativas e sindicatos, o que aumentou a força do movimento e as oportunidades de intercâmbio de aprendizagens.

Uma vez que os trabalhadores do saneamento têm tendência a vir de bases marginalizadas, à semelhança dos catadores de lixo, muitas vezes têm acesso limitado à educação e à formação que lhes permitem negociar uma melhoria das condições, negociar preços melhores ou até gerir os seus salários. A falta de conhecimentos em saúde e segurança ocupacional também tem sido amplamente reconhecida por investigadores e profissionais. Os sindicatos podem ajudar a colmatar algumas destas lacunas; as ONGs internacionais podem ajudar a criar laços entre organizações existentes e emergentes de trabalhadores sanitários e sindicatos.

3. Defender um melhor ambiente em termos de políticas

As organizações de catadores de lixo receberam apoio significativo de organizações internacionais na geração de conhecimentos e defesa. As cooperativas beneficiaram grandemente do apoio ao envolvimento em processos de formulação de políticas e debates de várias partes interessadas sobre a gestão de resíduos. As organizações internacionais estimularam a investigação e a recolha de dados fiáveis sobre os catadores, incluindo a quantificação e a caracterização desses trabalhadores, e como poderiam ser efetivamente incluídos no modelo de gestão de resíduos urbanos. A nossa investigação demonstrou que as ONGIs também podem desempenhar um papel na defesa de melhores ambientes de políticas e regulatórios para as cooperativas, por exemplo, pressionando os governos a oferecer oportunidades às cooperativas de catadores para que participem em concursos públicos e processos contratuais em condições que lhes permitam competir eficazmente com empresas privadas.

Adicionalmente, podem ter-se em consideração as organizações de catadores de lixo, quando estas contribuem para objetivos específicos de desenvolvimento. As OINGs podem, assim, apoiar os movimentos dos trabalhadores do saneamento, incentivando e impulsionando a investigação e a recolha de dados sobre assuntos ligados à sua saúde, segurança e dignidade. Isto pode dar aos trabalhadores de saneamento dados concretos para usar na defesa dos seus direitos. Estes podem igualmente pressionar as autoridades municipais para que incluam os trabalhadores de saneamento em sistemas municipais de gestão de lamas fecais. A inclusão pode levar a melhores condições de trabalho e a uma cadeia de saneamento gerida com segurança, que protege a saúde pública.

Inoussa Ouedraogo, esvaziador manual, dentro de um poço a esvaziar uma latrina familiar em Ouagadougou, Burkina Faso.
Inoussa Ouedraogo, esvaziador manual, dentro de um poço a esvaziar uma latrina familiar em Ouagadougou, Burkina Faso.
Image: WaterAid/ Basile Ouedraogo

O trabalho de saneamento pode tornar-se um meio de subsistência sustentável?

Apesar dos esforços das ONGs, da sociedade civil e dos governos para melhorar as condições dos trabalhadores de saneamento, o efeito tem sido reduzido, até agora. Por exemplo, apesar das dezenas de programas de reabilitação da apanha manual na Índia, esta ocupação proibida persiste. A existência de retretes de fossa seca e o mau uso da infraestrutura sanitária garantem uma necessidade permanente de esvaziamento manual. E, por cada catador manual que encontra uma saída, há outro trabalhador em dificuldades que aguarda para o substituir.

Mesmo assim, há muito que podemos fazer. Ao dar visibilidade às lutas dos trabalhadores do saneamento, ajudando a dar-lhes o reconhecimento que merecem, esses trabalhadores podem ser empoderados para passar à ação e começar a unir forças, tal como os catadores já o fizeram no passado. Se os trabalhadores do saneamento receberem apoio na criação de capacidades, redes e defesa de direitos, poderão criar movimentos mais fortes e liderar o caminho para a mudança de comportamentos sociais e governamentais.

Os benefícios de elevar o estatuto e as condições dos trabalhadores do saneamento podem ir além dos próprios trabalhadores. No Brasil, o governo defendeu a recolha de resíduos como a melhor estratégia para promover a inclusão social e económica de diversas pessoas muito pobres. Defendeu-a também como um elemento-chave na estratégia de alcançar a gestão sustentável dos resíduos urbanos. O trabalho de saneamento pode representar uma oportunidade semelhante? Se as condições de trabalho dos trabalhadores do saneamento forem melhoradas e for eliminada a associação entre esta ocupação e a marginalização, poderá tornar-se um meio de subsistência digno e seguro, que abre caminho para uma gestão sustentável das lamas fecais?

Maria UribePerez realizou a sua investigação enquanto voluntária numa equipa de políticas e de defesa de trabalhadores de saneamento na WaterAid. Este blogue é o primeiro da nossa série sobre trabalhadores de saneamento, um ano após a publicação da nossa análise inovadora produzida em conjunto com o Banco Mundial, a Organização Mundial da Saúde e a Organização Internacional do Trabalho – Health, safety and dignity of sanitation workers (saúde, segurança e dignidade dos trabalhadores do saneamento).