Como podemos mostrar que a crise hídrica da Cidade do Cabo é normal para os mais pobres da África Austral
A Cidade do Cabo enfrenta uma crise no abastecimento de água, mas há décadas que a falta de água potável já é normal para milhões de populações pobres em toda a África do Sul e na região. Sakhile Khaweka, gestora de apoio regional da WaterAid para a África Austral, destaca o que podemos fazer para tirar partido da atenção atual e chamar a atenção para as pessoas marginalizadas que vivem esta crise diariamente.
É inédito para uma cidade moderna como a Cidade do Cabo estar prestes a ficar sem água, mas está é uma história comum em muitas comunidades rurais pobres no Cabo Oriental e em partes da África Austral. Por que motivo a falta de água é de repente uma situação de crise, quando muitas comunidades pobres da cidade não têm acesso a água potável há tantos anos?
A curta de Sven Harding "Moonwalk", que ganhou a competição de curtas SH02RTS da WaterAid para o Dia Mundial da Água em 2015, mostra as dificuldades da escassez de água na mesma cidade para as pessoas que vivem em urbanizações informais. Esta curta atraiu muita atenção, tanto a nível local como internacional.
"Tal como em muitas cidades modernas, há um forte contraste entre "ter" e "não ter" na Cidade do Cabo", afirma Sven. "Pessoas com pouco acesso a água corrente e potável vivem a apenas alguns quilómetros de pessoas com enormes piscinas de água doce privadas e fontes de água no jardim."
Uma crise comum
A falta de acesso à água potável é comum em toda a África Austral, porque há pouca precipitação e é uma região propensa à seca. A pluviosidade média anual para a África do Sul é de 450 ml: um valor muito inferior à média global de 860 ml.
Uma combinação de seca contínua, alterações climáticas e crescimento populacional resultou em barragens secas e racionamento da água. Até há pouco tempo, esperava-se que a crise culminasse no "dia zero", um dia em que a Cidade do Cabo poderia ficar completamente sem abastecimento de água, a menos que chovesse. A 7 de março, as autoridades locais anunciaram que, uma vez que se apontava para o adiamento do dia zero para agosto, durante a estação da chuva, a cidade poderia escapar à justa a ficar completamente sem água.
A cidade conseguiu reduzir para metade o seu consumo diário de água – os moradores tinham um limite de 50 L de água por pessoa e por dia – mas as reservas ainda são baixas.
Crise para uma cidade próspera vs crise para comunidades pobres
Ninguém teria imaginado que uma cidade de renome mundial, com mais de 3,5 milhões de habitantes e que atrai mais de 1 milhão de turistas por ano, poderia ficar de rastos desta forma. O turismo representa cerca de 7,5% da economia local.
Todos são afetados, seja qual for o seu estatuto. As pessoas mais ricas da cidade, as celebridades, os turistas, os políticos, os parlamentares, os responsáveis pelas decisões e os cidadãos comuns têm de fazer fila para a água racionada. A situação afeta as empresas, o turismo e o conforto geral da comunidade próspera da Cidade do Cabo.
Os baixos níveis das barragens e o desvio da água para o uso doméstico significam uma produção reduzida de citrinos e uma possível perda de postos de trabalho. As torneiras secas significam que não há um bom banho quente ou um duche, não há piscinas nos meses quentes de verão, não há água para descargas de sanitas, não há rega de relvados e jardins. O conforto geral de saber que a água está já ali desapareceu. Nos últimos meses, vimos os habitantes da cidade a transportar jerricãs e a fazer fila para a água: algo que anteriormente, só se via nas urbanizações informais.
É positivo que políticos, parlamentares e responsáveis por decisões sejam diretamente afetados, pois isso significa que já estão a trabalhar em soluções para a crise.
No entanto, muitas comunidades rurais pobres na África do Sul vivem com o "dia zero" há décadas. Sem acesso a água potável, saneamento adequado e outros serviços, as populações rurais pobres migram para as cidades em busca de oportunidades económicas e de uma vida melhor. Esperam também obter acesso aos serviços negados às comunidades rurais. A maioria dessas pessoas acaba em urbanizações informais superlotadas, onde o acesso a água potável e ao saneamento é fraco. As mulheres e meninas da maioria destas comunidades têm de caminhar horas para obter água, expondo-se a perigos como violações. Devido à falta de saneamento adequado, muitas destas comunidades acabam por praticar a defecação a céu aberto, o que implica o risco de disseminação de doenças.
Uma vez que estas pessoas não têm voz para exigir serviços, a situação existe há muitos anos, e irá continuar se não for também tratada como uma crise. Os protestos contra a prestação de serviços são comuns na África do Sul, tanto que o governo se habituou a eles, e mesmo quando ocorrem, nenhum é considerado urgente.
Como utilizamos esta crise na Cidade do Cabo para amplificar as vozes das populações pobres?
Penso que esta é uma grande oportunidade para sensibilizar para a situação de muitas comunidades pobres urbanas e rurais que ainda não têm acesso a água potável em toda a África Austral. À medida que o mundo inteiro observa como os responsáveis por tomadas de decisão na África do Sul tentam resolver a crise, questionemos como pretendem resolver a falta de acesso à água potável para as populações pobres urbanas e rurais.
O que pode fazer?
- Chamar a atenção dos meios de comunicação social que comunicam sobre a crise, e das redes sociais, para o facto de que as populações pobres urbanas e rurais estão numa situação pior, de modo que a comunicação não seja tendenciosa.
- Aproveitar a atenção dos meios de comunicação internacionais à crise da Cidade do Cabo para aumentar a consciencialização relativamente às pessoas pobres em todo o mundo que ainda não têm acesso à água.
- Aumentar a consciencialização sobre as alterações climáticas e seus efeitos – a Cidade do Cabo pode ser a primeira grande cidade a enfrentar torneiras secas, mas isso pode acontecer com outras cidades no futuro, pondo à prova a preparação dos governos para tais possibilidades.
- Ler o relatório de 2018 da WaterAid sobre a desigualdade da água – The Water Gap: State of the World's Water (O fosso da água: estado da água a nível mundial)